ÍSIS SEM VÉU
H.P.Blavatsky
Compilação: Mário J.B. Oliveira


INTERPRETAÇÕES DE CERTOS MITOS ANTIGOS. (L.1.pág.218).

Mas voltemos à nossa lenda do Edda. Ymir, o gigante, adormece, e transpira abundantemente. Essa transpiração força a axila de seu braço esquerdo a gerar desse lugar um homem e uma mulher, enquanto o seu pé produz um filho para eles. Assim, enquanto a "vaca" mítica dá o ser a uma raça de homens espirituais superiores, o gigante Ymir engendra uma raça de homens maus e depravados, os Hrimthussar, ou gigantes de gelo. Comparando esta notas com os Vedas hindus, encontramos, com ligeiras modificações, a mesma lenda cosmogônica em substância e detalhes. Brahmâ, assim que Bhagavat, o Deus Supremo, lhe concede poderes criativos, produz seres animados, inteiramente espirituais no princípio. Os Devatâs, habitantes da região do Svarga (celestial), são incapazes de viver na Terra; então Brahmâ cria os Daityas (gigantes, que se tornaram os habitantes do Pâtâla, as regiões inferiores do espaço), que também são capazes de habitar Mrityuloka (a Terra). Para remediar o mal, o poder criativo faz sair de sua boca o primeiro Brahaman, que então se torna o progenitor de nossa raça; de seu braço direito, Brahmâ cria Kshatriya, o guerreiro, e do esquerdo, Kshatriyâni, a consorte de Kshatriya. O filho de ambos, Vaisya, emana do pé direito do criador, e a sua esposa, Vaisya, do esquerdo. Enquanto na lenda escandinava Burr (o neto da Vaca Audhumla), um ser superior, desposa Beisla, uma filha da raça depravada de gigantes, na tradição hindu o primeiro Brahaman desposa Daiteyi, filha também da raça de gigantes; e no Gênese vemos os filhos de Deus tomando por esposas as filhas dos homens, e produzindo igualmente os poderosos homens da Antiguidade; todo o conjunto estabelece uma inquestionável identidade de origem entre o livro inspirado dos cristão, e as "fábulas" pagãs da Escandinávia e do Hindustão. As tradições de qualquer outra nação vizinha, se examinadas, apresentariam um resultado semelhante.

Qual o moderno cosmogonista que poderia condenar, num símbolo tão simples como o da serpente egípcia um círculo, um tal mundo de significados? Aqui temos, nesta criatura, toda a filosofia do universo: a matéria vivificada pelo espírito, e os dois produzindo conjuntamente do caos (Força) todas as coisas existentes. Para indicar que os elementos estão firmemente unidos nesta matéria cósmica, que a serpente simboliza, os egípcios dão um à sua causa.

Há um outro emblema, mais importante, relacionado à mudança de pele da serpente, que, se não nos enganamos, jamais foi anteriormente mencionado pelos nossos simbologistas. Como o réptil, depois de deixar sua pele, se torna livre do invólucro de matéria grosseira que o estorvava com um corpo grande demais, e retorna a sua existência com uma atividade renovada, assim o homem, rejeitando o corpo material grosseiro, entra no próximo estágio de sua existência com poderes maiores e com vitalidade mais intensa. Inversamente, os cabalistas caldeus relatam-nos que o homem primordial - que, ao contrário da teoria darwiniana, era mais puro, mais sábio e muito mais espiritual, como o mostram os mitos do Buri escandinavo, os Devatâs hindus, e os "filhos de Deus" mosaicos, numa palavra, de uma natureza muito superior à do homem da presente raça adâmica - tornou-se desespiritualizado ou contaminou-se com a matéria e, assim, pela primeira vez, recebeu o corpo carnal, que é caracterizado no Gênese no versículo profundamente significativo: "O Senhor Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu". A menos que os comentadores quisessem fazer da Causa Primeira um alfaiate celestial, o que poderiam estas palavras aparentemente absurdas significar, a não ser que o homem espiritual atingiu, através do progresso da involução, aquele ponto em que a matéria, predominando sobre o espírito e conquistando-o, transformou tal homem no homem físico, ou no segundo Adão, do segundo capítulo do Gênese?

Essa doutrina cabalística é elaborada mais amplamente no Livro de Jasher No cap. VII, estas vestes de pelo são colocadas por Noé na arca, depois de tê-las obtido por herança de Matusalém e Henoc, que as receberam de Adão e de sua mulher. Cam rouba-as de Noé, seu pai; dá-as "em segredo" a Cuch, que as esconde de seus filhos e irmãos e as passa a Nemrod.

Embora alguns cabalistas e mesmo alguns arqueólogos digam que "Adão, Henoc e Noé poderiam ser, na aparência externa, homens diferentes, eles eram na verdade a mesmíssima pessoa divina". Outros explicam que entre Adão e Noé intervieram muitos ciclos. Isto quer dizer que cada um dos patriarcas antediluvianos figurava como representante de uma raça que teve seu lugar numa sucessão de ciclos; e que cada uma dessas raças era menos espiritual do que a precedente. Assim, Noé embora um homem bom, não poderia sustentar a comparação com seu ancestral, Henoc, que "caminhou com Deus e não morreu". Daí a interpretação alegórica que faz Noé receber sua túnica de pele por herança do segundo Adão e de Henoc, mas não vesti-la ele próprio, pois, de outro modo, Cam não poderia roubá-la. Mas Noé e seus filhos atravessaram o dilúvio; e enquanto o primeiro pertencia à antiga e ainda espiritual geração antediluviana, já que ele foi selecionado entre toda a Humanidade por sua pureza, os seus filhos eram pós-diluvianos. A túnica de pele recebida "em segredo" -, quando a sua natureza espiritual começou a ser maculada pela matéria - por Cuch passou a Nemrod o mais poderoso e forte dos homens físicos posteriores ao dilúvio - o último remanescente dos gigantes antediluvianos.

Na lenda escandinava, Ymir, o gigante, é morto pelos filhos de Burr, e as correntes de sangue que fluíram de suas feridas eram tão copiosas que afogaram toda a raça de gigantes de gelo e neblina, e só Bergelmir que pertencia a esta raça, se salvou com sua mulher, refugiando-se num barco, o que lhes permitiu perpetuar um novo ramo de gigantes do velho tronco. Mas todos os filhos de Burr escaparam ilesos da inundação.

Quando se decifra o simbologismo dessa lenda diluviana, percebe-se imediatamente o verdadeiro sentido da alegoria. O gigante Ymir simboliza a primitiva matéria orgânica bruta, as forças cósmicas cegas, em seu estado caótico, antes de receberam o impulso inteligente do Espírito Divino que as pôs em movimento regular e dependente das leis imutáveis. A progênie de Buri são os "filhos de Deus", ou os deuses menores mencionados por Platão no Timeu, que foram incumbidos, como diz, da criação dos homens, pois vemo-los tomando os restos dilacerados de Ymir do Ginnungagap, o abismo caótico, e empregando-os na criação de nosso mundo. Seu sangue vai formar os oceanos e os rios; seus ossos, as montanhas; seus dentes, as rochas e os penhascos; seus cabelos, as árvores, etc., ao passo que seu crânio forma a abóbada celeste, mantida por quatro colunas que representam os quatro pontos cardiais. Das sobrancelhas de Ymir originou-se a futura morada do homem - Midgard. Esta morada (a Terra), diz o Edda, deve, para ser corretamente descrita em todas as menores particularidades, ser concebida redonda como um anel, ou um disco, flutuando no meio do Oceano Celestial (Éter). É circundada por Joumungand, a gigante Midgard - ou a Serpente da Terra, que mantém a cauda em sua boca. É a serpente cósmica, matéria e espírito produto combinado e emanação de Ymir, a grosseira matéria rudimentar, e do espírito dos "filhos de Deus", que moldou e criou todas as formas. Esta emanação é a luz astral dos cabalistas, e o ainda problemático e pouco conhecido éter, ou o "agente hipotético de grande elasticidade" de nosso físico.

Graças à mesma lenda escandinava da criação da Humanidade, pode-se inferir o quanto estavam os antigos seguros da doutrina da trina natureza humana. Segundo o Voluspâ, Odin, Honer e Lodur, que são os progenitores de nossa raça, encontraram em um de seus passeios nas praias do oceano dois bastões flutuando sobre as ondas, "impotentes e sem destino". Odin soprou-lhes o alento da vida; Honer concedeu-lhes alma e movimento; e 'Lodur, beleza, linguagem, inteligência e audição. Deram ao homem o nome de Askr - o freixo - e à mulher o de Embla - o amieiro. Estes primeiros homens foram colocados em midgard (jardim do meio, ou Éden) e herdaram, de seus criadores, a matéria ou vida inorgânica; a mente, ou a alma; e o espírito puro; a primeira correspondendo àquela parte de seu organismo que nasceu dos restos de Ymir, o gigante-matéria; a segunda, de Aesir, ou deuses, descendentes de Buri; de o terceiro, de Vaner, ou representante do espírito puro.

Quem é capaz de estudar cuidadosamente as religiões antigas e os mitos cosmogônicos sem perceber que esta semelhança marcante de concepções, em sua forma exotérica e espírito esotérico, não resulta de uma simples coincidência, mas manifesta um propósito convergente? Isto mostra que já naquelas épocas, que foram excluídas de nossos olhos pela névoa impenetrável da tradição, o pensamento religioso se desenvolveu com uma simpatia uniforme em todas as porções do globo. Os cristãos chamam essa adoração da natureza em suas verdades mais ocultas de Panteísmo. Mas se este, que reverência e nos revela Deus no espaço em sua única forma objetiva possível - a da natureza visível -, lembra perfeitamente a Humanidade daquele que a criou, e uma religião de dogmatismo religioso apenas serve para ocultá-lo mais e mais de nossos olhos, qual dentre ambos está mais bem-adaptado às necessidades da Humanidade?

A ciência moderna insiste na doutrina da evolução; a razão e a "doutrina secreta" fazem o mesmo, e a idéia é corroborada pelas lendas e mitos antigos, e mesmo pela própria Bíblia que se lê nas entrelinhas. Vemos uma flor desenvolver-se lentamente de um bastão e o bastão da sua semente. Mas de onde provêm esta, com todo o seu programa predeterminado de transformação física, e suas forças invisíveis, portanto espirituais, que desenvolvem gradualmente sua forma, cor e odor? A palavra evolução fala por si. O germe da atual raça humana deve ter preexistido na origem desta raça, como a semente, na qual repousa oculta a flor do próprio verão, desenvolveu-se na cápsula de sua flor-mãe; a mãe pode não diferir senão ligeiramente, mas eles ainda difere de sua futura progênie. Os ancestrais antediluvianos dos elefantes e dos lagartos atuais foram, o mamute e o plesiossáurio; por que os progenitores de nossa raça humana não poderiam ter sido os "gigantes" dos Vedas, do Voluspâ e do livro Gênese? Se é positivamente absurdo acreditar que a "transformação das espécies" tenha ocorrido de acordo com alguns dos pontos de vista mais materialista dos evolucionistas, é simplesmente natural pensar que cada gênero, a começar dos moluscos e terminando com o homem-macaco, se modificou a partir de sua própria forma primordial e distinta. Supondo-se que concordemos em que "os animais descenderam no máximo de apenas quatro ou cinco progenitores"; e que mesmo à la rigueur "todos os seres orgânicos que já viveram sobre esta Terra descenderam de alguma forma primordial única"; ainda assim, somente um materialista cego com uma pedra, ou completamente desprovido de intuição, pode seriamente esperar ver "no distante futuro (...) a psicologia estabelecida sobre uma nova base, a da aquisição necessária e por degraus de todos os poderes e capacidades mentais".

O homem físico, enquanto produto da evolução, pode ser deixado nas mãos do homem da ciência exata. Ninguém, não ser ele, pode esclarecer a origem física da raça. Mas devemos positivamente negar ao materialista o mesmo privilégio no que respeita à evolução psíquica e espiritual do homem, pois nenhuma evidência conclusiva pode demonstrar que ele e suas faculdades superiores são "produtos da evolução, tal como a planta mais humilde e o verme mais ínfimo".







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